Perguntam-me variadas vezes porque é que dispenso tempo em livros fantásticos, porque é que gasto a minha atenção em livros muitas vezes da prateleira dos livros juvenis ou para jovens adultos quando poderia estar a embrenhar-me num clássico de um russo, ou de um grisalho eremita americano, porque não qualquer coisa mais perto da minha demografia ou qualquer coisa mais intelectual ou pertinente, porquê perder tempo com coisas imaginadas quando há tantas reflexões sobre o mundo e uma interminável quantidade de tratados linguísticos que fariam de mim um ser mais erudito, mais esclarecido ou até mais inteligente.
Habitualmente a resposta é a mesma, um ligeiro encolher de ombros. Não porque me falte resposta mas, simplesmente porque sei que a argumentação não levaria a lado nenhum, porque para estes locutores que tentam chegar a mim através das suas palavras sei que nunca iram compreender, falta-lhes aquela peça que não lhes permite ver a real questão que se levanta: Como é que tu podes não ler livros fantásticos?
Não se trata de uma questão de que literatura é ou não é louvável, do que é importante ou não para o conhecimento ou para a educação da pessoa: Trata-se do que é o cerne de ser humano, de imaginar, de ser curioso de ultrapassar as barreiras que nos são impostas pelo universo, as regras do caos ao qual é a nossa missão testar os limites e dar ordem.
O fantástico permite a manipulação desta regras, atribui ao leitor condição de arquitecto e permite-lhe a mudança das leis que regem o universo, dar asas a quem não tem, criar mundos que não existem em qualquer mapa, dar duas luas ao céu da noite, inventar uma nova espécie, dar vozes a objectos do dia a dia e acima disto tudo permite-nos viver mais do que a realidade nos permite.
Ver novos mundos, conhecer mil e uma novas pessoas, conhecer os confins do universo ou viajar por mundos onde cada novo passo traz até mim uma nova criatura, ou uma nova cidade com a sua história, parte de um mecanismo complicado que um escritor nos tenha oferecido, e assim exploro. Desprendido de regras ou de um ponto de origem comum a todos os humanos, de uma história global, desprendo-me da minha identidade humana e mergulho num novo universo, onde sou o primeiro a embrenhar, o primeiro a explorar, Marco Polo, Vasco da Gama, o primeiro homem de um mundo novo.
Assim vivo vezes e vezes sem conta. Hoje sou marinheiro em mares de cristal, amanhã serei feiticeiro numa terra para além do horizonte, onde ontem fui piloto de naves através de nébulas e um dia serei rei de um país em guerra.
Assim asseguro a minha imortalidade, transponho a minha alma para a letra e a página e dessas para mundos novos que nunca irei ver no meu corpo de carne, e por um momento a minha alma experimenta uma vida diferente.
Eu leio fantástico não porque não tenho ambições quanto ao que aprendo e sei, não porque não tenho vida mas, porque decidi viver muitas.
O fantástico não é o reino dos mais pequenos ou dos menos sociáveis, é o terreno dos sonhos e a epítome do ser humano, que nos permite dar forma ao inimaginável, e é nesse momento de criação e de invenção que nos aproximamos de um Deus qualquer.